era uma vez uma panelinha de barro. ela se chamava dora. morava no país das panelas de pressão, das colheres elegantes de prata para sobremesa e dos guardanapos brancos.
no reino encantado dos utensílios, todos tinham suas maravilhosas funções:
panela de pressão: pressionar e amolecer.
colheres de prata: serem mais bonitas e finas que as colheres de alumínio.
guardanapo branco: coletar os restinhos da satisfação.
num dia de fevereiro...nada aconteceu. dora passou o dia fervendo açúcar, fazendo melado.
num dia de agosto...nada aconteceu...dora aqueceu o feijão.
num dia setembro, uma coisinha aconteceu.
dora trincou! acordou de manhã, olhou para seu corpo miúdo e viu que tinha uma rachadura no peito.
desconfiou que algo esquisito acontecera. pensou:
- tô junta mais to partida?
foi até a panela de pressão.
- bom dia dona Toda Toda! (Toda era o nome da panela de pressão, e seu sobrenome era Toda também). dona Toda Toda era uma senhora elegante, sensata, que, através da pressão, conseguia amolecer tudo o que via pela frente.
- bom dia dorinha pssssssssss! como vai ziummmmmmm querida TZZZZZZZZZZchuuuuu?
- ai...olha isso. e dora mostrou a rachadura no peito para a dona Toda Toda.
- dorinha - ziiiiiiiiiummmmmmmmmm, o que é issoooo sssoooo sooooooo?
- eu não sei dona Toda Toda... respondeu curiosa e ficou olhando dona Toda Toda, pressionar e amolecer...ela fazia muito bem aquilo, admirável.
as duas tiveram uma conversa rápida, porque dona Toda Toda era competente e ágil, onde dona Toda Toda chegou a seguinte conclusão: dora havia sido amolecida, depois de tanto ferver as coisas devagarzinho. uma coisa estranha, mas, que era possível com quem ficava com a quentura dentro por muito tempo.
isso era uma coisa ruim?
- não!!! pensaram as duas. era uma coisa que se passava com quem não pressionava e fervia as coisas rapidamente.
mais tarde, a hora que dora foi para a mesa, saiu dela e escorreu por todo canto, aos poucos, todo doce de leite que ela fervera.
o guardapado foi ensopado pelo doce de leite e disse:
- dorinha, que delícia de quentinho!!! e, se fartou de satisfação. estava lambuzado de doçura e morninho...melecado de delícia. depois o guardanapo teve que tomar um banho muito longo, como nunca havia tomado, porque nunca tinha se sujado tanto e deixou de ser branco, não tinha mais cor, estava iluminado!!!
chegaram as colheres de alumínio, que eram mais feinhas, de fato, do que as colheres de prata. e dada sua feiura, só elas podiam pegar aquele doce derramado em tudo e em todos. as colheres de prata ficaram guardadas, para momentos mais contidos e elegantes.
as colheres de alumínio tintilharam soltas na lambreca.
dora, estupefata com todo aquela agitação, coisas novas se passando, sentimentos diferentes, não conseguia entender aquilo tudo, e, principalmente, aquela estranha sensação em seu peito.
ela não sabia o que estava acontecendo com ela.
ela não tinha a quem recorrer. era o país dos utensílios. as coisas eram usáveis como elas eram. não havia concerto. e dora, estava de peito partido, sem saber bem o porquê, e isso a fazia com que ela jorrasse pra fora tudo o que colocava dentro de si.
conversando com seu Mesudo, que continha a grande sabedoria das antigas mesas de madeira, ele lhe relatou que já havia visto muitos casos como aquele: panelas sem tampa, colheres sem cabo, guarnapados esburacados e que não era pra ela estranhar...que a mudança dos utensílios traziam outros usos e sensações.
ninguém ali viu um defeito.
ninguém ali disse que dorinha estar com o peito partido fosse um problema.
talvez porque ninguém ali, apesar de todos serem muito diferentes e terem funções muito específicas entre si, esperava do outro mais do que a condição do outro, enquanto um simples utensílio, pudesse dar.
dora seguiu jorrando-se. com o tempo, seu peito partido, transformou-se em motivo constante de festa para todos, já que ela não podia conter o quente que trazia dentro.
depois de muito tempo, chegou ao reino encantado dos utensílios, uma velha cadeira gasta, lascada, que só tinha de três pés. logo dora reconheceu o segredo das coisas transformadas e cumprimentou com ternura a nova integrante:
- bom dia, dona senhora cadeira de balanço!!!
as duas riram, inocentadas por ser aquilo que eram.
essa é a história da doçura derramada pelas frestas, daquilo que se passa com todas as frágeis panelinhas de barro que todos deveríamos ter em nossas cozinhas afetivas, e das cadeiras, que perderam um pé, que todos nós levamos no coração...